segunda-feira, 23 de maio de 2011

Cinema Verdade - O Extraordinário Lixo!

O que vemos em quem nos olha?


Foi com muita delicadeza e respeito que o artista plástico Vik Muniz entrou no Jardim Gramacho e trouxe uma proposta inovadora para uma gente simples: uma idéia extraordinária. Com imagens singelas Vik constrói uma obra artística criada através do próprio lixo selecionado pela associação dos catadores de material reciclável.
Alguns críticos disseram :“feito para gringo ver”. Parece que há certa “crueldade cruel” no cinema verdade que teima em ser sempre cru (sem ser no ponto) e o público responde, parecendo estar “fatigado de compaixão”, como explicaremos a seguir. Compassion Fatigue (1999), título do livro que aborda o tema de que por vezes a miséria é dilacerada sem preservar a dignidade do empobrecido. A autora usa o termo: pornografia da miséria ou “pornomisery”. Pois, a miséria, é o delicado objeto de trabalho pelo qual Vik e sua equipe produzem um belo resultado. Não “pra gringo ver”, mas, pra toda gente ver, inclusive para a gente da comunidade (onde foram produzidas as cenas) assistirem ao documentário e sentirem-se orgulhosas do trabalho finalizado. “Pra gringo
ver” urubus voando sobre montanhas de lixo e mulheres sentindo orgulho de serem catadoras de material reciclável há mais de 20 anos. Sem romantismo, com realismo, pois, ninguém tirou ninguém da miséria, ninguém realizou o sonho de ninguém.
Pornografia da Miséria e urubus? Nunca mais!
WASTELAND,(...) o título original do documentário, sobre a arte de Vik Muniz, poderia ter ido profundamente à crueza das montanhas de lixo e fogo espontâneo causado por gazes de lixões. Crianças chorando, pneus em chamas. Mais miséria. Entardecer. Urubus. Moscas, ratos e cachorros. A pornografia da miséria no seu gênero mais cru estava ali com todos seus elementos em seu universo pleno. As lentes frenéticas poderiam sim, capturar lágrimas e moscas, urubus e tristeza. Pobreza e restos de comida, crianças , abandono e um pitada de falta de esperança. Enfim, os ingredientes para as piores (ou melhores) cenas de miséria em lixo na Waste Land – terra do lixo – estavam lá. Não foram usadas e o foco na dignidade de quem vive ali foi devidamente respeitado. A arte foi o centro da atenção, o lixo foi coadjuvante. Pura arte em construção.
Tião (Presidente da Associação de Catadores do Jardim Gramacho), destaca-se na linguagem solta e perspicaz. Tião costura o documentário com a história que dá o inicio e o fim desta trama. Ele condensa a paixão de todos os catadores envolvidos na arte de Vik. Arte que durante o documentário transforma e seduz a comunidade.
Ao demonstrar interesse e curiosidade em ler Maquiavel e Nietzsche, Tião é convidado para posar na releitura da famosa obra do revolucionário Murat na banheira, de Jaccques-Louis David.

A descoberta do Estranho
O envolvimento da comunidade começa neste momento, quando outras pessoas são fotografadas e começam a ser “tratadas” como personalidades no processo criativo de Vik Muniz. Ele envolve toda a comunidade promovendo um mutirão sem explicar exatamente o que iria acontecer. Aos poucos, quando a montagem da primeira figura começa a ganhar forma, o grupo se envolve mais e mais no universo do enorme galpão criado pela equipe e percebe o que está sendo executado.
Vik Muniz – obra com a foto de Tião.
A princípio há aquele desconforto ou a descoberta descrita por Freud “ quando passamos a rever as coisas, pessoas, impressões, eventos e situações que conseguem despertar em nós um sentimento de estranheza” ( O Estranho – 1919). Grosso modo, esse estranhamento não se dá pelo contato com o desconhecido, mas com impressões primitivas (ocultas ou esquecidas) que passam a ser ativadas por determinado fato ou objeto. Talvez não tenhamos familiaridade com os depósitos de lixo e seus catadores, mas sabemos de sua existência. Quando numa “atitude estranha”, Vik resolve transformar o lixo em arte, transforma seus retratados em sujeitos autores, na medida em que a matéria da arte é a matéria de suas vidas :o lixo. A transformação recicla o lixo e coloca a obra no ideário atual. Re-dimensiona a idéia da reciclagem . Transforma o sentido do trabalho inferior (braçal, sujo) e qualifica o produto do trabalho
como arte. Então o catador torna-se mais do que é. O lixo simples, torna-se todo ele, o que só seria em exceção: um objeto valioso. E nesse trabalho, o trabalhador vai garimpando partes de si aparentemente improváveis nesse universo. Os invisíveis vêm à luz, como às vezes coisas brilham no meio do escuro do grosso do lixo.
A sinergia criada entre Vik e a Associação dos Catadores é impressionante e o documentário caminha de maneira decisiva para esse encontro, entre os laços cada vez mais próximos e um artista cada vez mais seguro de seu trabalho.
Vik Muniz – obra com a foto de Tião.
Assim, a principal parte de Lixo Extraordinário é envolvente e a Arte passa a ser personagem, agente de transformação. Arte transforma? - “ Fui eu que fiz” . Amarrando cenas e construção das enormes imagens criadas pela comunidade sob a direção de Vik, os depoimentos marcam e provam as mudanças geradas na valorização de cada um com frases como: “nossa, eu tô linda” ; “ isso eu que fiz”; “ esse sou eu” .
Em O que vemos, o que nos olha, Didi-Huberman tem muito a iluminar nosso olhar para esta reflexão da obra de Vik Muniz. Didi- Huberman analisa de que modo o que nos olha,de forma constante acaba retornando no que acreditamos apenas ver. A arte é algo que se vê, se dá simplesmente a ver, e, por isso mesmo, impõe sua específica presença.
Se de certo modo, Vik Muniz nos impele a voltar o olhar novamente para onde aparentemente não há nada a ver ( uma montanha de lixo), catadores anônimos ou um cubo, não cessa de dialogar e verificar que um cubo é mais que um cubo e neste sentido, uma comunidade de catadores de material reciclado se vê diferente a partir da própria obra de arte. (...) Ao mesmo tempo, a obra nos olha, pelo olhar dos retratados e pela condição paradoxal que explicita, na riqueza e na pureza do que antes era lixo.
"Lixo Extraordinário" é certamente um dos mais brilhantes documentários do ano . Críticas ácidas comentam que o artista aparece “feliz em excesso”. Junte um monte de lixo, uma comunidade de catadores de lixo, muita criatividade, gente trabalhando em um projeto maravilhoso para criar o que você mais gosta na vida. Ficaria feliz, extremamente feliz, ou pouco feliz?
Waste Land. Título original para gringo ler é extraordinário, pois vai além do cinema: as imagens estão eternizadas em telas marcantes e espalhadas pelo mundo.


Mônica Borja Bonilha Moraes

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