quinta-feira, 10 de março de 2011

Ainda sobre o ócio...

Pessoal, complementando a Cintia e a Edi e fazendo uma ligação entre ócio, televisão e capitalismo.

Todos nós sabemos que vivemos sob a ótica do capitalismo e que, raramente conseguimos viver e escapar dos seus domínios, que perpassa todas as esferas da nossa vida.  Todos nós sabemos também que o ser humano é um ser simbólico e que é conectado, desde o seu nascimento, a esta teia de significados chamada sociedade que foi tecida por ele mesmo.

Neste sentido, não podemos pensar no ócio (criativo ou não, não importa aqui), apartado das relações de produção, ou seja, fora do sistema capitalista.

De acordo com o Houaiss, ócio é “cessação do trabalho; folga, repouso, quietação, vagar, preguiça, moleza, mandriice, trabalho leve, agradável...” e lazer é “tempo que sobra do horário de trabalho, cessação de uma atividade; descanso; repouso”. Portanto, ócio é sinônimo de lazer e, do ponto de vista do capital, ao ato de consumir.   O lazer que conhecemos na nossa sociedade atual surge como contraponto ao mundo do trabalho e este sob a égide do capital.

Fazendo uma retrospectiva histórica, é lá nos idos da Revolução Industrial (XVIII), quando os trabalhadores eram levados a exaustão (física/psíquica), que o tempo livre surge com um paradoxo.   Não discutirei o significado de livre, uma vez que seria complicado admitir a existência de um tempo verdadeiramente livre na vida em sociedade, seja regida pelo capital ou não.

De todo modo, o tempo livre era necessário para alavancar o capital, da mesma forma que foi resultado da luta operária pela diminuição do tempo do trabalho que era, em fins do século XIX e início do século XX, de 15 ou 16 horas por dia de segunda a domingo. Na luta pela diminuição da jornada de trabalho, um industrial brasileiro no início do século XX declarou que “a jornada de oito horas apenas aumentará os lazeres alcoólicos e o trabalho da polícia”.

Entretanto, façamos uma pequena digressão.  Consumir, no sentido inglês, até o século XVI, significava destruir. A palavra “consume” (consumir) surge na língua inglesa no século XIV, da francesa “consumer” e “consommer” e da latina “consumere” (absorver por completo, devorar, dilapidar). 

Consumir tinha um sentido desfavorável no sentido de destruição e foi só em meados do século XVIII que apareceu um sentido mais neutro nas descrições da economia, se ligando, portanto, aos pares produtor/consumidor e produção/consumo.  Se a palavra tinha um sentido negativo até o século XIX, ela passou da economia para um uso mais popular e geral no século XX, ganhando uma aparência de autonomia, como no sentido de uma “escolha do consumidor” que observamos na atualidade.

Henry Ford no início do século XX percebeu a lógica do sistema e diminuiu o tempo de trabalho de seus funcionários para 8 horas e ainda distribuiu cinco dólares para cada um. Ou seja, era necessário criar um “consumidor” com escolha própria, nem que fosse para adquirir produtos da concorrência.

Deste modo, a televisão (ver de longe) surge como produto desta sociedade capitalista, mas ela é também (re)produtora desta mesma lógica, propiciando uma nova sociabilidade de consumidores desde o seu surgimento. Muitas pessoas que trabalham com e na televisão ou mesmo apenas seus defensores afirmam que não cabe a ela propiciar um pensamento mais crítico, apenas entreter ou informar.    Ora, informar não é ter conhecimento, que só é possível através de um pensamento abstrato. Aliás, é possível ser muito bem informado sem ter conhecimento. Portanto, a televisão não é a sombra da caverna de Platão. É a própria caverna.

Me recordo agora de um filme documentário chamado Estamira, e em determinado momento a personagem afirma “tudo é abstrato, o mundo é abstrato, eu sou abstrato”.  Fica aqui a dica de um filme sobre uma mulher que vive(u) do lixo chamado Jardim Gramaxo, no Rio de Janeiro.  Não sei bem como é possível um lixo ter nome de Jardim...  

O homo sapiens se fez pela letra, pela palavra, pela escrita, pelos livros e que, portanto, durante a sua história, multiplicou o seu saber.  É um fato, desde Gutemberg. Entretanto, pela primeira vez, com o advento da televisão, temos a primazia da imagem, do espetáculo e do espetacular sobre o som. Aliás, não precisamos nem mesmo do som, pois este está apenas em função da imagem e comenta a imagem. Guy Debord  em seu texto “A Sociedade do Espetáculo” afirmou que “o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”.

Ainda no poder simbólico da televisão, crianças são socializadas já nos primeiros anos (meses) diante da televisão.   Ela sequer domina os códigos da linguagem, mas já está lá, com os olhos “vidrados” na tela, que se tornou uma versão moderna de “babá” eletrônica, pois a criança emudece diante do que vê.  É já na primeira infância que estão sendo formados os futuros consumidores, aliás, se observamos a cultura atual, crianças também se tornaram consumidoras de produtos advindos da indústria cultural. 

O  problema surge quando tentamos desvincular o consumo do ócio, e este da televisão, pois a lógica do capital é aproveitar todo o tempo livre para o consumo, ou seja, quando as pessoas não estiverem trabalhando, estarão consumindo.  

Daí é que fico pensando se temos de fato algum tempo que não seja para o consumo dentro da lógica capitalista na nossa sociedade atual.

Não estaremos sempre consumindo algo, quer seja um jeans (peça transformada em ícone pela indústria da moda), um aparelho de televisão, um livro ou uma obra de arte?   Em decorrência, será que temos mesmo a escolha de determinados produtos ou os produtos é que nos escolhem?  Tenho a impressão que as duas coisas.

Pra finalizar, como afirmei no início, não estamos fora desta sociedade e, portanto, consumindo ou não, sempre partilharemos dos mesmos códigos e estes são capitalistas.  Como seres simbólicos que somos, o que importa, talvez, não seja o objeto em si, mas o valor atribuído a estes por cada grupo ou por cada pessoa dentro da sua sociedade.

Quero indicar dois textos curtos para quem quer ler sobre a questão do ócio e que acho interessantes, que são: “O Direito ao Ócio” de Paul Lafargue e “O Elogio ao Ócio” de Bertrand Russell.  É possível encontrar os dois textos em apenas um livro organizado pelo italiano Domenico De Masi.   

Um abraço a todos,

Marcos Chiesa

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