quarta-feira, 9 de março de 2011

GOTT IST TOT

Na última aula presenciamos um colega suscitando questões sobre a afirmação de Nietzsche sobre a “morte de Deus”. Assunto áspero para ser tratado sob o teto de um Edifício João Calvino,  porém bem aplainado, honesta e tecnicamente,  pela docente que evocou a Epistemologia.  Esse tema é bom pretexto para meu debutar neste blog.

Inicio alguns raciocínios comentando que somente com a perspectiva estética superei o incômodo que sentia ao ver aqueles rostos sofridos, desdentados, mãos calejadas, unhas sujas por força da faina diária, normalmente nos canteiros de obras, mal vestidos, com ridículas gravatas destoantes e surradas a pretender um status social igualmente ridículo, com suas vozes roucas pelo esforço vocal não disciplinado a gotejar babas e a explicar deus em praça pública, ameaçando, com violação das mais elementares regras do idioma, os indiferentes e incrédulos passantes, com o fim do mundo e a condenação ao fogo eterno, enfatizando suas ameaças pelo lançar de suas bíblias, igualmente surradas e sofridas, ora para o ar, ora para o solo. 

De fato, sob o olhar de um “homem de teatro” a cena é incrivelmente bela.  De dar inveja a muitos diretores que pretendem aquela “verdade” de seus atores sem conseguir.  Só não tenho aplaudido por receio de ser mal interpretado ou convidado a participar do rito. 

Tenho me indagado porém: têm consciência esses circunstantes do que, de fato, produzem com suas perorações?  O quanto esse esforço canaliza fortunas, tiradas aos tostões dos mais pobres e mais simples, para compra de inúmeros auditórios da cidade e de canais de televisão reprodutores de vítimas, e malas ilegalmente cheias de dinheiro apreendidas em aeroportos?  

Não diferente o estilo clássico dos cultos tradicionais, com suas portentosas edificações e tesouros cercados de miseráveis sem teto por todos os lados e, em seus bastidores, repletos de segredos inenarráveis  . Em emprestados termos bíblicos: “como sepulcros, caiados por fora e por dentro toda sorte de imundície” .

O que são afinal estas igrejas, se não túmulos e mausoléus de Deus. (Nietzsche, A Gaia Ciência, §125, in fine).

Sobre esses “templos” é oportuno o diálogo relatado na bíblia cristã (novo testamento) entre Jesus e a mulher de Samaria:

Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és profeta.  Nossos pais adoraram neste monte e vós dizeis que é  em Jerusalém o lugar onde se deve adorar.

Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai.  Vós adorais o que não sabeis. [...] Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade; porque são esses que o Pai busca como seus adoradores. Deus é espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e verdade. (João, 4:19).

O cristão autônomo Paulo (São Paulo para os íntimos), ao visitar o Areópago em Atenas diante dos inúmeros santuários dedicados aos inúmeros deuses apontou para o que anunciava ser dedicado “ao deus desconhecido”, dizendo:  “esse é o cara”... e alertou:

O Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens. (Atos, 17:23).

Há os que acham que isso é para valer, outros relativizam, porém esse debate é para religiosos, que respeito, mas entre os quais não me incluo. Haja epistemologia. Divirtam-se.  

Por último e em justiça ao pensador, vale transcrever, em parte, o contexto da famosa e polêmica assertiva de Nietzsche:

Deus está morto! E nós o matamos! Como haveremos de nos consolar, assassinos entre os assassinos? O mais sagrado e poderoso que possuía até agora o mundo sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Com que água poderemos nos purificar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos que inventar? Não é a grandeza desse ato demais para nós? [...]  Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a história até hoje! (A Gaia Ciência, §125).

Por essas e outras concordo com a frase que “alguém” disse ter lido: “Deus prefere os ateus”.  Diferentemente daqueles,  estes me parecem mais confiáveis, pois assumem, com risco, sua consciência e suas responsabilidades. Fazem parte de uma história superior.

Romualdo Bacco – março 2011

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