quinta-feira, 17 de março de 2011

Onirokit

Onirokit

Este é o texto da Cult comentado hoje na aula da Marcia.
Pensei em quantos onirokits já "comprei" ao longo da vida, na esperança daquele prazer imediato, que te invade e embriaga!! Faz o mundo parecer mais iluminado, o tempo em suspensão, o coração a bater mais forte, os objetos de uma beleza rara e as pessoas mais interessantes. Mas o efeito é muito rápido e tudo volta a ser como antes e a fissura se torna presente, fazendo doer cada músculo de nosso corpo.
Então vem a necessidade de que um novo "kit dos sonhos" apareça logo, para que o vazio da mente e da alma possam ser novamente embriagados!!!
Beijo a todos, Lu Deus

Marcia Tiburi discute o Onirokit - ou a estética como drogadição
Publicado em 13 de dezembro de 2010 na revista Cult.
Onirokitsch pode-se pronunciar onirokit. A sonoridade das palavras nos engana. O termo kit permite que imaginemos facilmente uma embalagem bem pensada como as usadas para organizar sachês de chá. Onirokit seria uma caixinha cheia de todas as drogas prontas a provocar em seus usuários aquela sorte de efeitos mentais e psíquicos que conhecemos como alucinações. O termo kitsch, por sua vez, diz de uma espécie de antiestilo cuja característica também é causar efeitos.
Mas há mais no trocadilho do que supõe a filosofia: o que um organizado objeto de desejo – a pandórica caixinha cheia de drogas – teria a ver com a estética kitsch? Ora, as drogas provocam efeitos psicofísicos que nada mais são do que efeitos estéticos. Seja com o onirokit ou com o onirokitsch, estamos a falar do que age sobre a percepção humana. Drogas psicotrópicas e alucinógenas são aquelas que afetam nossa percepção. Do mesmo modo, produtos culturais afetam nossa percepção. Não é improdutivo, nesse sentido, perguntar se o fundamento da indústria cultural não seria a drogadição. Vejamos como.
Naquilo que Christoph Türcke chamou de “sociedade excitada”, está em jogo a natureza viciada e viciante da ordem social estética. Ora, toda droga é estética na medida em que atinge a corporal percepção humana. A injeção de estímulo estético na percepção coletiva até o ponto de transformar a realidade em uma forma de alucinação. Irônico é dizer que, no contexto da indústria cultural, revela-se que o que não pode ser vendido legalmente – drogas – pode ser vendido esteticamente. Mas a droga estética – em sentido lato – não é apenas o trash, ou a imensa gama de “sobra” no lugar do que entenderíamos como “obra” de arte, mas tudo aquilo que captura pelo efeito falso. Para além do fetiche, a mercadoria hoje é experimentada como drogadição. Podemos dizer que a atualíssima forma da mercadoria é, pois, o onirokit, um sonho barato que, visto de perto, faz pensar em alucinação.
Caminho curto para o sonho
Diz-se kitsch para tudo que provoca um específico e contraditório efeito: do anão de jardim à estampa de oncinha. A contradição entre o material pobre e o efeito que se pretende rico – como em “pedras preciosas de plástico”. Tal efeito perturbou os sacerdotes do bom gosto que, irritados com imitações baratas, deram o nome à coisa. Para eles, kitsch é a estética do mau gosto: “coisa de pobre” ou, o que é pior, de “novo-rico”.
Mas o kitsch tem uma vasta clientela, como teria o onirokit caso pudesse ser vendido em quiosques de shopping center. O kitsch vem a ser a reconciliação das contradições do capitalismo que com ele tanto goza quanto se ressente. Como estética do resto, o kitsch está entre o trash e o luxo naquele momento em que o luxo não passa de desejo de causar efeito, mesmo que seja o efeito zero das lojas chiques. Onirokitsch foi o termo cunhado por Walter Benjamin para falar deste “caminho direto à banalidade” que prenunciava o conceito de indústria cultural de Adorno e Horkheimer. Benjamin falou de um sonho “adornado baratamente de frases feitas”. Hoje podemos pensar na televisão e nos shopping centers, enquanto ele pensava no cinema e nas Passagens  de Paris. Substitutiva do sonho, a televisão é a principal máquina de produção do onirokitsch. Funcionando como caixinha organizada, não seria exagero chamá-la de onirokit. Mas já não carregamos esse kit, é o kit que nos carrega quando seu nome é sociedade do espetáculo. O espetáculo é o vício visual. A nova fissura.
A sociedade viciada em percepções quer emoções fortes. Quer sentir demais. E paga por elas não apenas correndo ao show de rock, ao cinema, ou pagando a TV a cabo, mas também indo à igreja que vende a fé como grande emoção. Mas há também uma mercadoria mais simples que garante a sensação. É o ornamento barato. O vício contemporâneo em decoração, na moda, no mundo fashion em geral, serve para acobertar a angústia com o espaço aberto do sensível, o deserto do real onde teríamos de colocar o sonho verdadeiro ao qual podemos ainda chamar de imaginação. Drogas ilegais não podem obviamente ser comercializadas, o mundo do capitalismo vende apenas o efeito da droga nas “sobras” que são as mercadorias culturais industrializadas. Se o onirokit não pode não ser legalizado, o onirokitsch acha rápido seu lugar. A violência da decoração de Natal dos shoppings e das grandes cidades é, por fim, o triunfo da alucinação no tempo da miséria da imaginação. O deserto do real é a esfera que a arte acaba por salvar em  cada uma de suas ações mesmo quando a realidade não passa mais da terra de ninguém onde a fantasmagoria, as sombras da imaginação colonizada e assassinada, vem reclamar seu lugar.

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